1 - Os livros são pessoais e intransmissíveis. Mal os folheamos, guardam pedaços de nós. Nas páginas onde paramos. Nos cantos que, delicadamente, lhes dobramos. No rasto que, a páginas tantas, deixamos neles. Na verdade, os livros são uma impressão... digital. E é na medida em que lhes tocamos e andamos neles num virote, para a frente e para trás, que eles passam a ser parte de nós.
2 - Os livros ocupam lugar. Aliás, têm - entre os demais - uma espécie de cantinho só seu. Seja numa prateleira, numa mesa ou pelo chão, até. Os livros são discretos no espaço que ocupam. Mas precisam de um espaço só seu para que possam respirar.
4 - Os livros devem ter o nosso nome, se nos aprouver. E devemos poder sublinhá-los e rabiscá-los. E anotá-los. “Livros são brinquedos com letras”, sim. Livros intocáveis são peças de porcelana. E, sendo assim, não são livros.
5 - É claro que os livros são quem nos leva da humildade à sabedoria. São quem nos desmancha e nos comove. E quem nos acicata e vira do avesso. Aprender sem um livro é o mesmo que saber quase tudo da vida e, ainda assim, faltar-nos a gramática que lhe dê sentido. É verdade que a vida não se aprende nos livros; sim. Mas sem livros a vida que se vive talvez nunca se aprenda.
6 - É bom passear os livros. Dar-lhes a responsabilidade (que eles cumprem, com escrúpulo, aliás) de serem a nossa companhia. Por isso mesmo, talvez quem não passeie os livros nunca tenha passeado neles.
7 - Os livros são para ser tratados com carinho. E com cuidado. Com delicadeza. E com paixão. Mas precisam, para ser livros, de ser tratados por tu. De forma familiar, digamos.
Os livros anotados e sublinhados pelos outros nunca são nossos. São um exercício de aluguer de sabedoria. Mas há como uma casa ser nossa sem fotografias? E sem objetos insignificantes, que dão sentido àquilo que vivemos? E sem todo o jeitinho, chato e minucioso, como “aquele objeto” só pode viver “ali”, “naquele lugar”, e um sem número de caprichos que só existem porque tudo em nós tem uma história atrás de si? Sem tudo o que faz parte de nós dentro de si, a nossa casa não é um espaço que nos acolha; é uma porta-giratória. Porquê, pergunta-se? Porque ela é como cada um dos nossos livros que, página a página, constrói a nossa intimidade. Vendo melhor, os nossos livros são o rasto da(s) nossa(s) história(s). E é por isso que eles são parte de nós.
8 - Ora, é um pouco por isto que não entendo que os livros escolares tenham de ser reutilizados. É verdade que o ensino é universal, mas não é gratuito. E - é um absurdo, eu sei - os livros escolares são, muitas vezes, aquilo que nos lembra, todos os anos, que a escola ainda não é tão inclusiva quanto precisa de ser para ser uma escola de verdade. Isto é, aquilo que os livros escolares custam compromete, para muitas crianças, a universalidade da educação ao serviço de todos. E, sobretudo, da intenção de transformar o mundo num lugar mais democrático e mais igual.
9 - Os livros escolares, por serem escolares, não deixam de ser livros. Com tudo aquilo que um livro só nosso deve ter para nós.
10 - Mas, sendo assim, porque é que os livros escolares não são, tendencialmente, gratuitos? Porque construir conteúdos com engenho, produzi-los e torná-los “apetitosos” para a sabedoria exige equipas grandes e complexas e muitos meios. Logo, o trabalho de uma editora deve ir no sentido de tornar o livro mais desafiante, mais amigo da curiosidade e mais íntimo, até. Será mau que um livro tenha um preço justo? Não, claro! Será mau que, para contornar os custos em que o Estado não devia poupar, os livros devam ser utilizados, um ano atrás do outro, por alunos diferentes? Seria terrível. Porquê? Porque livros que não se possam anotar são sabedoria sem liberdade de expressão.
11 - Não devia, por isso, esperar-se que os livros não sejam reutilizados? Que sentido tem uma criança lidar com um livro como se não fosse seu, e sem que ele nunca pudesse vir a fazer parte de si? Que sentido tem não o poder sublinhar, rabiscar, escrevinhar ou anotar? Será falta de respeito para com os livros e com a própria sabedoria que ela o faça ou, pelo contrário, um exercício de amor para com o livro? Aliás, aprende-se melhor tocando, mexendo, folheando e sentindo um livro (será isso menos delicadeza?) ou a conviver com ele como se não se pudesse “desabotoar-lhe o colarinho” e deixá-lo de “fralda de fora”? E, depois, quem reabilita as crianças da perda do cheiro (fantástico) que só um livro novo consegue ter? Quem as irá ressarcir do toque, delicado, que ele nos sugere, de início, e da textura a veludo que ele parece ter quando o tocamos, uma primeira vez? E, depois, quem as irá recompensar, pela vida fora, por não poderem guardar, de entre todos os seus livros, aqueles que lhes abriram uma avenida nova na cabeça, sobretudo quando os reencontram, trinta anos depois, e viajam neles, outra vez, por mais que eles parecessem velhotes e com artroses?
12 - É sensato fazer da reutilização dos livros escolares uma tensão que, por vezes, parece passar por uma picardia esquerda/direita? É sensato pedir às crianças que, se usarem um livro, escrevam a lápis e que, entretanto, se espere que 100 ou 200 milhões de páginas sejam (convenientemente) apagadas entre julho e setembro para que os livros pareçam novos, quando não são? É sensato esperar que elas sintam um livro como seu e, ao mesmo tempo, convivam com sublinhados de terceiros, anotações de estranhos e tudo o mais que um livro, quando é pessoal, precisa de ter? E onde fica, a partir da reutilização obrigatória dos livros, o sinal de alarme das mães quando, preocupadas com a parcimónia com que alguns dos seus filhos lidam com os livros escolares, desabafam: “ele não toca num livro!”? Na categoria do alarme ou na do orgulho? As crianças não mereciam melhor? ... Mas, afinal, não seria mais sensato que todas tivessem direito aos seus livros e que, todos nós, em função das necessidades que algumas (ou muitas) têm, pudéssemos comprometer-nos a fazer com que elas nunca os deixassem de ter?